quinta-feira, março 09, 2006

Beatrice e Marie

[sinopse...a desenvolver.]


Marie e Beatrice já tinham tudo planeado. Mal os pais de cada uma saíssem para o trabalho, encontrar-se-iam no grande carvalho no centro da aldeia.
Eram nove horas da manhã quando se encontraram. Marie trazia o cabelo apanhado em duas tranças e um vestido com flores cor-de-rosa. Beatrice tinha o longo cabelo negro solto sobre os ombros, e trazia um vestido negro.
Marie pegou na mão de Beatrice e disse: 'vem comigo'.
Foram até à estação de comboios da velha aldeia. Maria comprou dois bilhetes que iam dar a Paris.
-O comboio só parte daqui a duas horas! - disse Beatrice.
-Assim nunca vamos poder sair daqui!! Se nos apanham vão fazer perguntas...
-O melhor é irmo-nos esconder no bosque durante um bocado, antes que nos encontrem.
E lá foram as duas de mãos dadas para o meio do bosque, à espera que o tempo passasse. Beijaram-se e amaram-se entre flores e animaizinhos. Quando olharam para o relógio, faltavam cinco minutos para o comboio partir. Pegaram nas malas e correram o mais que puderam, e lá entram no comboio no preciso momento em que as portas se estavam a fechar.
-Tens a certeza de que queres fazer isto? - perguntou Beatrice.
-Claro que sim! Porquê? Queres voltar para casa?
-Claro que não! Quero ficar contigo!! Para onde tu fores, eu vou...
Durante muito tempo ficaram a olhar a paisagem que se ia modificando e ia ficando cada vez mais urbana. O comboio apitou e foi parando lentamente. Tinham chegado ao seu destino.
Pegaram nas malas e saíram do comboio. Olharam à volta, nunca tinham visto algo tão grandioso. Comeram umas bifanas numa barraquinha junto ao rio e passearam durante muito tempo. Por volta das seis da tarde o sonho começou a desvanecer-se.
-O sol vai começar a pôr-se daqui a bocado e não temos onde dormir...- disse Beatrice, com um ar desolado.
-Vamos alugar um quarto.- acalmou-a Marie.
-Mal temos dinheiro!!!
-Chega para uma noite. E amanhã arranjamos trabalhos.
-Tenho medo...
-Não tenhas. - e abraçou-a com ternura.
Sabiam que não podiam ficar em grandes hotéis pois o dinheiro era pouco, mas lá encontraram uma casa de uma velha senhora que alugava quartos e ali ficaram. O quarto era bonito, decorado num estilo muito antigo. Ficaram ali e acordaram bem cedo, vestiram-se com as suas melhores roupas e foram à caça de emprego...
Por sorte, arranjaram trabalho no mesmo sitío, um café novo, muito 'in', muito chique. 'Vocês são bonitas e ainda me vão trazer mais clientes. Mas vejam lá, não façam disparates, senão ponho-vos na rua em dois tempos', disse-lhes o dono do café, um gordo de bigode na casa dos quarenta.
Começavam no dia seguinte, por isso, depois de lerem e assinarem os contractos, foram passear pelo Louvre, tiraram fotografias junto ao Arco do Triunfo, comeram grandes crepes num café nos Campos Elísios...e enquanto comiam esse crepe, Beatrice (sempre a mais ajuizada) começou a pensar nos pais.
-Não achas que lhes devíamos telefonar?- perguntou, por fim.
-A quem?
-Aos nossos pais, obviamente.
-Não, porquê?
-Porque se for preciso põe a policía à nossa procura e a nossa cara aparece estampada nos jornais.
-Eeeeerrrrm...se calhar tens razão. Mas eu não tenho coragem.
-Eu ligo aos meus pais e digo para avisarem os teus.
-Que lhes vais dizer?
-Que fomos para muito longe e vamos trabalhar num café.
-E se eles perguntarem quando voltamos?
-Dizemos que só voltamos daqui a uns anos.
-Está bem.
Saíram da esplanada e entraram no café, fizeram um gesto ao empregado e Beatrice pegou no telefone. Depois de muito tocar, ouviu a voz do pai.
-Pai...
-Beatrice!!! Estamos tão preocupados! E os pais da Marie! Onde estão??
-Estamos muito longe. E amanhã vamos começar a trabalhar num café. Não se preocupem connosco, está tudo bem.
-Porque é que fugiram sem avisar? E onde estão????
-Porque queríamos mudar de vida e...bem, onde estamos não interessa. Fica descansado. Com dezassete anos já sabemos tomar conta de nós. A Marie manda beijinhos para vocês e para os pais dela. Adeus!
E desligou.

Os dias foram passando, trabalhavam no café, depois iam jantar a algum lado...pagavam-lhes bem, e de vez em quando lá iam jantar a algum restaurante mais chique, ou compravam um vestido mais caro...
À noite enfiavam-se em bares ou então, se não estavam com humor para isso, iam passear pelas margens do Sena. Depois voltavam para o seu quartinho na casa da velha senhora, e se estavam muito cansadas adormeciam, mas a maior parte das vezes ficavam a conversar no escuro, e muitas vezes faziam amor.
Havia nelas uma sensualidade inocente que não se encontrava em mais ninguém à face da terra.
Por vezes discutiam, mas logo a seguir faziam as pazes. Não conseguiam viver uma sem a outra.
Às vezes lembravam-se da aldeia, recordavam momentos lá vividos, os pais (com quem nunca mais haviam falado), os amigos, mas esse mundo já estava tão distante como o céu do mar. Lembravam-se das coisas vagamente, envoltas num manto de névoa, como se tivesse sido um sonho. Muitas vezes sentiam saudades, mas nunca puseram em causa a hipótese de voltar.
De vez em quando passavam a noite fora, na casa de algum rapaz meio bêbedo arranjado nalgum bar escuro, e a que ficava de fora voltava para casa sózinha, morrendo de ciúmes.
Até que um dia aconteceu o pior.

Beatrice e Marie tinham ido a um bar, e Marie tinha dicidido qual era a 'presa' daquela noite. Beatrice estava cansada e disse-lhe que ia para casa. Marie ficou mais algum tempo a enfeitiçar a sua 'presa', um tipo loiro, por volta dos vinte anos.
Marie foi para casa dele.

Beatrice acordou no dia seguinte, tomou um banho, engoliu um bolo a correr e foi para o café. Passavam-se as horas e Marie não aparecia. Até que apareceu a polícia.
Marie tinha sido morta na noite anterior, esfaqueada cerca de quinze vezes e deitada ao rio de seguida.
Beatrice não queria acreditar. Mas mesmo assim reuniu todas as suas forças e organizou um funeral. Sabia que Marie queria ser cremada e foi isso que fez.
Não telefonou aos seus pais ou aos de Marie. Sentia-se culpada por toda aquela loucura, não devia ter dado ouvidos às loucuras de Marie. Se não lhe tivesse dado ouvidos ainda estariam na aldeia felizes, poderiam amar-se às escondidas no bosque, comer frutos silvestres vindos do seu meio natural...
Mas agora era tarde demais.
Deitou as cinzas no Sena.

Durante anos sentiu-se em baixo. Conheceu um homem de trinta anos chamado Pierre, com um charme irresistível, que fumava cachimbo e entregava-se à bebida frequentemente. Foi viver para o apartamento dele e começou a beber. Perdeu o emprego. Passava horas a vaguear pelas ruas, perdeu a beleza de outrora. Discutia frequentemente com Pierre e um dia pegou nas coisas e saiu do apartamento dele.
Não tinha para onde ir e o dinheiro era pouco. Sentiu-se mais infeliz que nunca. Não podia sequer beber, pois ficaria sem dinheiro e podia precisar dele para outras coisas.
Deixou-se dormir num banco.
Quando acordou,a ressaca de todos aqueles meses de angústia passou e sentiu-se mais sóbria que nunca. Só tinha duas hipóteses. Ou continuava em Paris e tentava arranjar um trabalho, ou voltava para casa.
Aos 27 anos era um farrapo.
Aqueles dez anos vividos em Paris tinham-na transformado para sempre. Os primeiros seis anos, passados na companhia de Marie, tinham sido maravilhosos, de uma loucura inimaginável, uma montanha russa. Os últimos quatro anos, desde a morte de Marie, tinham-na transformado numa alcóolica triste e sem vontade de viver.
Sabia que se continuasse em Paris acabaria por descer ainda mais baixo na sua decadência. A dor que sentia era demasiado grande para conseguir ultrapassá-la sózinha. Por isso entendeu que o melhor era voltar a casa.

Foi despedir-se de Paris, deu uma volta pelas margens do Sena, foi até à Torre Eiffel, passou por baixo do Arco do Triunfo, comeu um crepe no café dos Campos Elisios onde se tinha sentado com Marie na primeira vez que ali tinham ido.
Depois, foi até à estação de comboios e comprou um bilhete que a levaria de volta a casa.
Passou a viagem a dormir, até que o comboio apitou e Beatrice acordou. Saiu do comboio. Eram 2h da manhã. Inspirou o ar fresco do campo. Correu até à porta de casa e quando ia para tocar, a sua mão deteve-se. Que dizer aos pais? Que tinha fugido para viver com Marie mais livremente, que Marie tinha sido morta por um serial killer, e que devido ao desgosto se tinha entregado à bebida?
Não, sabia que não podia dizer isso.
Mas também não podia mentir. Os pais mereciam a verdade.

Tirou da mala um papel e uma caneta que outrora pertencera a Marie. Escreveu o seguinte recado: 'Queridos pais, espero que estejam bem. Amo-vos muito. Eu e a Marie estamos bem, continuamos muito amigas e vamos ficar juntas para sempre. Um beijo. Sejam felizes por mim...com muito amor, Beatrice'.
Pôs o bilhete na caixa do correio. Deixou a mala à porta de casa, correu pela noite dentro, as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Entrou dentro do bosque. Olhou com saudade o sitío onde tinha amado Marie pela última vez antes de saírem da aldeia. Correu até chegar ao rio que passava pelo meio do bosque.

Atirou-se.
E acordou com Marie a seu lado.